Conto – José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins
Tradição é Tradição

Anne Marie Margot realmente não se adaptara ao espírito daquela academia de ginástica: as conversas banais, as revistas fúteis que as pessoas liam enquanto se exercitavam, a mania das alunas se pesarem a todo instante, os olhares ensandecidos que os alunos lançavam enquanto ela fazia exercícios de glúteos, eram detalhes que não passavam desapercebidamente ante a sua visão crítica do ambiente… Só não se matriculara em outra academia porque aquela era a mais próxima da sua casa, e ela achava que o tipo de pessoas das outras academias deveria ser o mesmo…

A única pessoa que os diáfanos olhos de Anne Marie Margot admiravam, era um sujeito que sempre trajava uma camiseta de uma marca de artigos esportivos da década de setenta que já não existe mais… “Eu me lembro desta grife, onde será que ele arrumou esta camiseta???”… era o que ela pensava enquanto o observava lendo um tomo tão pesado como um halter… ambos faziam bicicleta ergométrica. – “Desculpe-me por interromper sua leitura, mas esta marca que você está usando já não existe há muito tempo… onde você conseguiu???”

– “Meu pai morava no interior, em São Luís do Paraitinga e uma vez ele vinha subindo a Taubaté-Ubatuba (*) em uma “Rural” e encontrou um caminhão capotado, sem os ocupantes, com um monte de camisetas sobre o asfalto, ele recolheu o material esportivo… que foi a única herança que ele me deixou…”

“E o que é que você está lendo???”

“Finnegans Wake, saiu agora em versão portuguesa, foi um cara do Rio Grande do Sul que fez a tradução, você sabia que só a França, Japão e o Brasil é que são os países que traduziram toda a obra de James Joyce???”

– “Há não diga… dele eu só li Dublinenses…” e assim começou uma conversa animada…

No dia seguinte, sábado, estavam os dois na Academia HIPERFITNESS, quando uma frequentadora pediu para mudar o canal da TV posicionada defronte as esteiras… “É que a Sheilinha, minha sobrinha vai aparecer cantando no programa do Raul Gil!!!” – disse a tal frequentadora.

Pela primeira vez naquela academia, a TV não mais sintonizou a MTV… Ambos faziam esteira… ela observava atentamente o programa e de repente ficou envergonhada ao imaginar que aquele intelectual por quem já estava apaixonada, percebesse seu interesse pelos shows dos calouros de auditório… mas percebeu que ele também acompanhava a TV e disse:

“Você gosta do Raul Gil ???”

– “Claro que gosto, inclusive quando eu era criança eu cantei no programa dele…”

– “Eu também acompanho desde criancinha… lembro inclusive, faz muito tempo, de um menino de sombreiro vermelho, em lágrimas, cantando “Galopeira”. (**)

– “Mas eu cantei “Galopeira”, e meu chapéu era vermelho… Então você lembra??? … Era eu!!!”

– “É claro que lembro, eu cresci na esperança de ver de novo aquele garoto… e agora o encontrei…”

Em pouquíssimo tempo estavam namorando, abandonaram a HIPERFITNESS e há cinco anos fundaram uma academia de ginástica, chamada OS ACADÊMICOS, um lugar onde se ouve a BBC de Londres executando música clássica (ao invés do rock bate estaca), onde a balança informa o peso da pessoa por categoria (mosca, pena, médio, médio ligeiro, meio-pesado, etc. ) ao invés de mostrar numéricamente os quilos… onde o frasco que é usado para borrifar alcoól nos colchonetes contém gin inglês (o que faz com que os alunos possam tomar um traguinho entre os exercícios e que os colchonetes fiquem sempre perfumados) e que a TV só exibe pérolas do cinema brasileiro (chanchadas da Atlântica , Cinema Marginal , etc.)… Contrariando as previsões dos famosos especialistas, o empreendimento foi um sucesso.

Pela primeira vez o aparelho de de televisão da prodigiosa academia não irá mais mostrar um obra de Carlos Manga ou de Rogério Sganzerla… é que sábado que vem, estará sintonizado no programa de Raul Gil, pois o filho de Anne Maria Margot participará do quadro de calouros mirins para executar (usando o mesmo sombreiro vermelho) aquela canção que seu pai cantara muitos anos antes…


(*) Rodovia Osvaldo Cruz ( SP-125 ).
(**) “Galopeira” (Maurício Cardoso Ocampo – versão: Pedro Bento).